Custodio Bissetti Advogados

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03 Mar 2020

A controvérsia ‘Uber’: da economia compartilhada à fuga regulatória?

Em 5 de fevereiro deste ano de 2020, a Quinta Turma do Tribunal Superior do Trabalho afastou o reconhecimento do vínculo de emprego entre um motorista de Guarulhos (SP) e a Uber do Brasil Tecnologia Ltda. De acordo com o relator do processo, ministro Breno Medeiros, ficou caracterizado que o motorista tinha a possibilidade de ficar off-line, com flexibilidade na prestação de serviços e nos horários de trabalho.
 
Em sua defesa, a Uber sustentou que não atua como empresa de transporte, mas de exploração de plataforma tecnológica, em que os motoristas atuam como parceiros, numa economia compartilhada. Argumentou, ainda, que o motorista, ao contratar os serviços de intermediação digital, concordou com os termos e as condições propostos e que a relação mantida com todos os motoristas parceiros é uniforme.
 
Na avaliação da Quinta Turma, os elementos constantes dos autos revelam a inexistência do vínculo, tendo em vista que a autonomia do motorista no desempenho das atividades descaracteriza a subordinação. “A ampla flexibilidade do trabalhador em determinar a rotina, os horários de trabalho, os locais em que deseja atuar e a quantidade de clientes que pretende atender por dia é incompatível com o reconhecimento da relação de emprego, que tem como pressuposto básico a subordinação”, explicou o ministro Breno Medeiros1.
 
Todavia, esse entendimento não é seguido no lugar que é o berço de grande parte das recentes inovações tecnológicas. A Uber, junto a outras empresas do setor de serviços sob demanda, está processando o estado da Califórnia alegando que uma lei ali sancionada é inconstitucional e potencialmente danosa para esse nicho específico de mercado.
 
Segundo a documentação do processo, as empresas envolvidas referem-se à lei que força companhias como Uber, Lyft e outras similares a reclassificarem seus prestadores de serviço como empregados, estabelecendo direitos trabalhistas a motoristas, entregadores e outros profissionais do ramo (é isso mesmo, nos Estados Unidos existem direitos trabalhistas). O estado da Califórnia foi o primeiro nos Estados Unidos a aprovar tal medida, que hoje já conta com projetos similares em Nova York, Washington e Oregon2.
 
Quem tem razão nessa polêmica, a Uber ou os legisladores da Califórnia? Precisamos entender alguns conceitos para avaliarmos melhor a questão.
 
Quando se trata especificamente de automóveis, o modelo de economia compartilhada prevê, basicamente, 3 (três) formatos: a) car sharing: sistema de economia compartilhada por meio do qual determinado grupo de indivíduos compartilha entre si uma frota de veículos, por determinado tempo; b) ridesharing: quando pessoas se utilizam de veículos que já estejam a caminho da região a que pretendem chegar (a tradicional “carona”); c) for-profit ridesharing: utilização de um sistema tecnológico de contratação de compartilhamento dos veículos, que permite que o motorista receba uma contrapartida financeira pelo transporte3.
 
Qualquer que seja o modelo adotado, o ponto central será sempre o uso compartilhado de bens já existentes, apoiado em relações de confiança entre usuários movidos por um espírito de colaboração, o que pode se dar de forma direta (contatos pessoais ou em grupos) ou com o auxílio de uma solução tecnológica – uma plataforma operando em smartphones que conecta as partes interessadas (tecnologia person to person ou P2P) -, sendo acessória a questão da gratuidade ou da onerosidade.
 
Pois bem, a Uber e suas congêneres são empresas que desenvolvem plataformas tecnológicas para conectar as partes interessadas para que realizem um compartilhamento de veículos do tipo for-profit ridesharing, ou seja, com pagamento pelo usuário de contraprestação financeira ao motorista, tudo dentro do “espírito” da economia compartilhada. E agora surgem os problemas.
 
A economia compartilhada, ao menos no setor de automóveis, tinha como pressuposto que a quantidade de veículos já existentes representaria uma imensa capacidade ociosa, ou seja, os automóveis estariam parados e sem uso em boa parte do tempo de seus proprietários, o que permitiria a pessoas que não possuíam veículos deslocar-se por meio do uso colaborativo e inteligente dessa capacidade ociosa. Pensaram os inovadores que parte das pessoas gostaria mesmo era de chegar ao seu trabalho ou ao seu lazer, e não necessariamente possuir um carro e, por consequência, arcar com todos os seus custos associados (combustível, manutenção, estacionamento, taxas etc.).
 
Ao priorizar o uso em detrimento da propriedade, imaginava-se colaborar com a sociedade na redução da poluição e dos congestionamentos, no aproveitamento de certas vias para o uso das pessoas e na economia de custos que famílias experimentariam ao não mais precisar manter um ou dois automóveis.
 
Evidentemente, para funcionar, o compartilhamento de veículos precisava se apoiar em um nível ideal de empregos e ocupação da população, pois não era a intenção criar um novo nicho de mercado. Ao invés de um uso inteligente da capacidade ociosa dos automóveis, muitas pessoas que estavam desempregadas ou perderam seus empregos em diversos lugares do mundo desistiram de buscar novo enquadramento no mercado formal e resolveram usar seus veículos para prestar corridas pagas por meio de aplicativos.
 
Algumas daquelas pessoas, fora do mercado de trabalho e em busca de renda para as famílias, chegaram mesmo a adquirir um veículo novo para se tornar motorista “profissional” da Uber e afins, o que é algo absolutamente contrário aos princípios da economia compartilhada. A inovação cedeu à economia tradicional, a realidade se impôs.
 
É possível até entender quando pessoas sem renda transformam a economia compartilhada em um novo nicho de mercado, transfigurando princípios da inovação em prol de sustento. Não parece razoável é que as próprias plataformas distorçam a ideia de compartilhamento de uso na busca de lucro.
 
Em sua página na rede mundial de computadores, a Uber oferece ajuda para que pessoas adquiram veículos novos e se tornem motoristas associados à plataforma. Em determinada área do portal, a Uber coloca o seguinte título: “Não tem carro? Temos soluções.”; em seguida vem este texto: “Queremos ajudar você a começar. Por isso, temos parcerias com várias empresas para conseguir ofertas de aluguel de veículos, descontos em carros novos e muito mais.” Nada pode ser mais ofensivo a princípios da economia compartilhada que essa ajuda.
 
Portanto, ao deixar de lado a postura de plataforma tecnológica que viabiliza negociações pessoais do tipo for-profit ridesharing (quando deveria aguardar o ponto de massa crítica que viabilizaria a inovação) e passar a agir como player global na captação de parceiros e lucros, a Uber atraiu para si o entendimento de que se trata de uma empresa da economia tradicional, o que motiva leis como a da Califórnia, ainda que a relação dos motoristas com a Uber não possa ser considerada uma relação dotada de subordinação, como bem assentado na decisão do Tribunal Superior do Trabalho.
 
Ainda que os elementos característicos aponte para que o enquadramento mais adequado seja o de empresa de tecnologia, a guinada em direção aos lucros do “mercado de aplicativos de carona” parece atrair uma regulação não apenas de ordenação do trânsito, mas de conformação de mercado de trabalho.
 
É cedo para dizer que estas empresas são exemplos de fuga regulatória4, o que se dá quando agentes econômicos parecem se enquadrar formalmente em um modelo regulatório e, na realidade, praticam condutas de outra espécie a fim de evitar uma fiscalização ou tributação mais rigorosa, mas não se pode, a toda evidência, fechar os olhos para uma caminhada que parte da mera intermediação tecnológica de relações privadas e segue em direção à criação de um mercado de motoristas de aplicativos, inclusive com fomento da propriedade em detrimento do uso.
 
Em suma, a verificação de que os motoristas da Uber e empresas afins não podem ser enquadrados como empregados não deve impedir o debate sobre o desvirtuamento da economia compartilhada, com consequentes prejuízos à qualidade de vida nas cidades e ao amparo social de quem se tornou motorista de aplicativo “profissional”. Afinal de contas, estas questões polêmicas estão se voltando justamente contra as empresas de aplicativos de carona paga.
 
Fonte: JOTA em 02/03/2020 - Por JOÃO MARCELO REGO MAGALHÃES - Procurador do Banco Central do Brasil.